quarta-feira, 27 de maio de 2020

O Oceano no Fim do Caminho - Neil Gaiman

Este livro é um franco retorno à memórias da infância. Tão fantástico como a mente de uma criança interpretando um mundo aterrorizante que a força a crescer e tão verossímil, que nos deixa com uma sensação de autobiografia. 

Ao retornar para a sua cidade natal, o nosso protagonista sem nome se afasta do funeral que justificou a sua ida à Sussex e dirige para o lago que armazena lembranças marcantes da sua infância. As mulheres Hempstock, donas da propriedade onde o personagem mergulha em suas memórias, representaram estabilidade e encantamento em um momento em que a vida do menino de 7 anos fugia do controle. Agora, novamente em um momento de fragilidade, o homem formado retorna ao abrigo das mulheres, e se deixa levar pelas memórias de uma infância franca, pura e mágica.

Neil Gaiman me tirou gargalhadas no início da leitura, me entreteve com o desenrolar de eventos mágicos e fantasiosos e me tirou o chão com um final que nos ensina que voltar à infância é provavelmente a forma mais honesta de crescer. 


"A verdade é que não existem adultos. Nenhum, no mundo inteirinho - Ela pensou por um instante. Então sorriu - Tirando a vovó, claro."

Nota: 4/5
Editora: Intrínseca
Páginas: 208

terça-feira, 26 de maio de 2020

Os Noivos do Inverno - Cristelle Dabos

Este foi um dos melhores livros que eu li este ano. Abrir as páginas de Os Noivos do Inverno e mergulhar no universo criado por Dabos me fez entender o porquê deste ter sido o vencedor do Grand Prix de L'Imaginaire. Que mundo fantástico!

Cristelle esculpiu com zelo, detalhe por detalhe, um mundo dividido em arcas com espíritos ancestrais que, cada qual a sua maneira, "governam" a sua população. Governar provavelmente não é a palavra ideal para a influência que essas criaturas exercem nas suas arcas, mas é certo que cada uma tem características muito peculiares.

A arca de Ophélie é conhecida por criar pessoas com dons para objetos inanimados, são os animistas. Dentre as habilidades possíveis para o povo de Anima, Ophélie tem a capacidade de atravessar espelhos e "ler" objetos. Em termos simplificados, a nossa protagonista tem um excepcional dom para a arqueologia e para a museologia. Ophélie é uma personagem singular. "Estranha", anti-social e pouco interessada na própria aparência, a menina passou a vida enfiada em museus e se esquivando de propostas de casamento, até ser prometida em casamento ao frio noivo da inóspita Arca Polo.

A história é incrível, instigante e viciante. Terminei a leitura com a constatação de que preciso urgentemente do próximo livro da saga.

Nota: 5/5
Editora: Morro Branco
Páginas: 413

domingo, 24 de maio de 2020

As Intermitências da Morte - José Saramago

Ler Saramago só representa desafiar a escrita peculiar até os olhos se acostumarem ao estilo dos parágrafos extensos, sem marcação convencional de diálogo e em português de Portugal. Mas não se preocupe, rapidamente você se costuma e a leitura flui com facilidade.

As Intermitências da Morte é um livro que chamou a minha atenção por representar um cenário quase que oposto ao que estamos vivendo atualmente. Em determinado país, na virada de determinado ano, as pessoas param de morrer. O que inicialmente parece uma bênção, vira uma enorme catástrofe. Veja bem, não é como se as pessoas subitamente atingissem o máximo da saúde coletiva e ninguém mais chegasse ao estado da iminência da morte. Acidentes continuaram acontecendo, doenças continuaram aparecendo e a velhice insistia em mostrar as suas caras. Quem estava moribundo, permaneceu moribundo
, em um estado de "morte suspensiva" - o que se mostrou extremamente desagradável para os moradores daquele país.

Saramago tem insights excelentes ao mostrar as implicações do "não morrer" como uma lição para aqueles que, apavorados pelas incertezas (ou pela certeza) do que a morte traz, desejam ardentemente que ela nunca chegue. Ser privado da morte é uma tormenta muito maior do que morrer. O autor apresenta com maestria as consequências sociais de não morrer o que esta nova condição de vida sem fim traria para seguimentos religiosos, políticos e econômicos.

O primeiro terço do livro me deixou maravilhada e empolgada com a leitura. Depois de então a história se arrasta e fica extremamente cansativa. As ideias iniciais se esgotam e ficamos com a sensação de que o livro se prolongou para além dos seus limites naturais.

Nota: 4/5
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 207

sexta-feira, 22 de maio de 2020

O Homem e seus Símbolos - Carl Jung

Sou da opinião que é sempre válido colecionar conhecimentos sobre os mais variados assuntos, e reparei recentemente que minha compreensão da psicologia é nula. O ponto de referência inicial lógico seria Freud, mas sinceramente não queria ficar lendo coisas sobre sexualidade. Me restou então Jung, que um ex-padre austríaco que conheci (história louca) me disse uma vez ser o maior gênio da área. Pesquisei um pouco sobre qual seria o melhor livro para uma introdução e cheguei nessa obra.
O Homem e seus Símbolos foi feito exatamente como um apanhado introdutório de sua vasta produção, organizado por um leigo que servia como "padrão-médio" na função de identificar a dificuldade de compreensão dos textos. O primeiro texto, de autoria de Jung, é, como esperado, o melhor. Nele o autor expõe no nível mais simples suas teorias complexas sobre o inconsciente e os sonhos, se apoiando em evidências de simples assimilação e causos de sua vida. Não vou me estender nos temas abordados, mas vale dizer que a escolha das ilustrações exemplificativas é incrível e demonstra o nível cultural do pensador, que além de conhecer tais exemplos, consegue retirar suas essências magistralmente.
Os textos seguintes, já de autoria de alguns de seus mais proeminentes discípulos, passam pela explicação e exemplificação dos arquétipos, do simbolismo na arte e com a narração riquíssima da análise de um caso concreto. São legais, porém preferiria ler diretamente de Jung. Quem sabe não faço isso em breve.
Para um ignorante como eu, a leitura é a todo tempo fascinante. A lente jungiana de fato dá uma nova dimensão a muitos pontos que eu havia deixado de prestar atenção na vida, embora não possa dizer que me convenceu plenamente de sua concretude. Claro, isso não é algo que se possa esperar de uma obra quase que de divulgação, mas a quantidade de evidências místicas ou anedóticas vão muito ao oposto do que espero de algo que se considera científico. Jung tem seus argumentos quanto a isso, mas, baseado no que li nesta obra em específico, passou longe de me convencer.
Altamente recomendado para quem quer saber um mínimo da psicologia do inconsciente, mas já avisando que deixa mais perguntas na mente do que respostas.

Nota: 4/5

O Príncipe Cruel - Holly Black

Confesso que comprei o livro pela hype. O encomendei logo depois de comprar O Canto mais Escuro da Floresta e fiquei bastante desanimada com a minha escolha impulsiva após a primeira leitura. Decidi por iniciar imediatamente O Príncipe Cruel porque sabia que, se não o fizesse, ele acumularia pó na minha estante sem nunca ser aberto.

Ao iniciar a leitura me surpreendi com o estilo de escrita. Este segundo livro não parece ter sido escrito pela mesma autora: esta obra é muito mais detalhada e textualmente elaborada. Em comparação, conseguimos visualizar com mais facilidade os cenários féricos e ver o desenrolar da história para algo que vai além do puro drama adolescente. Ambas as histórias se desenham no mesmo universo (inclusive, personagens do primeiro livro da autora aparecem neste segundo). Apesar de girar em torno de outros protagonistas, eles apresentam grandes similaridades. Principalmente no que se refere às semelhanças entre Hazel e Jude: guerreiras humanas, as duas compartilham a paixão por homens-fada, a ausência dos pais na sua criação e a sua busca incessante pelo seu lugar ao sol no mundo férico.

Holly Black ainda tem dificuldade de construir as relações humanas entre os personagens e desenhar com sutileza os seus componentes psicológicos. Como ocorre no primeiro livro que li, os seus personagens são marcados por antagonismos que são incessantemente martelados no decorrer do texto. Isso torna a leitura pouco reveladora. Apesar das críticas, Holly Black conseguiu misturar seguimentos diferentes em uma mesma obra. O Príncipe Cruel é um bom livro de aventura para jovens que mistura fantasia, romance e estratégias de guerra.

Jude é uma adolescente humana cheia de personalidade que vive no meio de fadas incríveis, sedutoras e poderosas: uma premissa que certamente me encantaria se eu tivesse alguns (serei boazinha comigo mesma) anos a mesmo.
Nota: 3/5
Editora: Galera
Páginas: 321

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Linguagem e Mente - Noam Chomsky

Após ler O Reino da Fala, decidi que iria dar um passo adiante no entendimento da linguagem. Em uma frente, comecei a estudar alguns idiomas estrangeiros, em outra resolvi me aventurar na parte filosófica e acadêmica. Chomsky é o início óbvio.
A obra se compõe de conferências realizadas no Brasil na década de 90, em que ele expõe seus principais argumentos teóricos e responde aos seus críticos. Sua ideia da gramática universal é minuciosamente composta aos poucos, e amplamente exemplificada, deixando simples mesmo para um iniciante no assunto uma teoria tão complexa. Para os mais avançados, esquemas linguísticos detalhados em inglês são disponibilizados, e essa parte admito que vai muito além do que tenho capacidade e interesse de acompanhar. Inclusive talvez por isso minha resenha seja tão rasa.
Os iniciantes também são agraciados com análises das teorias dominantes anteriores à Chomsky, quando ele deixa claro o avanço de seu legado. Apesar de seu pouco caso com as pesquisas antropológicas, suas respostas às ditas descobertas da área são convincentes e poderosas, até com um ar de superioridade.
O último texto trata da biologia. Sinceramente esperava mais desse assunto, mas minha impressão é que o autor escondeu o jogo. Sei que ele tem uma outra obra totalmente dedicada a isso, então provavelmente a solução seja ir nessa fonte para matar minha curiosidade.
No geral, um livro excelente para um primeiro contato com a linguística acadêmica, com linguagem simples e muito bem escrito.

Nota: 3,5/5

A Mulher na Janela - A. J. Finn

"Agarofobia: a palavra vem do grego e significa 'medo do agora', ou seja, medo de transitar em lugares públicos e grandes espaços abertos. Hoje ela é usada para designar uma série de transtornos oriundos da ansiedade." (pag. 25)

O famoso thriller A Mulher na Janela foi comprado durante a minha onda de thrillers no início da quarentena, e ficou na prateleira quando ela acabou. A obra escrita por A. J. Finn (pseudônimo) estava prevista para sair como filme ainda este ano. O livro narra a história de Anna Fox, uma psicóloga infantil (irônico) que, após sofrer um enorme trauma há 10 meses, se vê impossibilitada de sair de casa. Diagnosticada com Agarofobia e escondendo o seu alcoolismo do mundo exterior, a protagonista vive sob uma mistura problemática de remédios controlados administrados com excessiva negligência na companhia de seu inquilino "faz tudo" e recebe apenas as visitas do seu psiquiatra e da sua fisioterapeuta.

Sozinha, Anna acompanha a rotina dos seus vizinhos através das lentes de uma Nikon. Tudo permanece estável na sua vida até a mudança dos novos vizinhos para o outro lado do parque. Nesse momento, uma série de eventos começam a acontecer que colocam em questão a sanidade da personagem. 

É impressionante como A. J. Finn retrata a relação de Anna com as suas taças de vinho. Elas "aparecem" magicamente na sua mão, e desaparecem pela sua garganta sem qualquer controle. É ainda impressionante como a história alterna períodos de maior e menor sobriedade e o amarra na história de A Mulher na Janela.

Este é daqueles thrillers recheados de plot twists ao ponto de que chegamos a conclusão de que não sabemos mais de nada. A leitura prende tanto que li em um dia.

Páginas: 352
Editora: Arqueiro
Nota: 4,5/5

domingo, 17 de maio de 2020

O Bazar Atômico - William Langewiesche

Mesmo com os dias da Guerra Fria deixados para trás, o terror de uma guerra nuclear ainda persiste. Inicialmente deixando de lado as hipóteses de conflitos entre nações, o jornalista William Langewiesche explora as opções e possibilidades para o desenvolvimento de armas nucleares em pequena escala, o ideal, por exemplo, para uma célula terrorista. Suas conclusões são preocupantes e tranquilizadoras ao mesmo tempo, pois apesar de a chance de fazer funcionar tal esquema seja ínfima, as consequências são catastróficas. É incrível o nível de pesquisa e aprofundamento do jornalista, que se deslocou para o olho do furacão a fim de encontrar respostas fora do senso comum e de pessoas ligadas diretamente à fonte do problema.
A segunda parte do livro se ocupa em tentar explicar como evoluiu a situação de países considerados menos importantes no contexto global mas que conseguiram - ou tentam conseguir - acesso às armas nucleares, com destaque para Paquistão, Índia, Irã e Iraque. Em alguns momentos se concentra em pessoas específicas, cientistas, políticos e celebridades, deixando o leitor um pouco apreensivo em perceber como o futuro da humanidade pode ser definido por ações de poucos. Novamente, ao mesmo tempo que preocupa, o autor tem o cuidado de tranquilizar. Sua conclusão é que a proliferação atômica é inevitável, porém com os devidos cuidados pode vir a ser inofensiva.
Uma boa leitura curta para os curiosos sobre o assunto, mas não indicada aos ansiosos.

Nota: 3/5

sábado, 16 de maio de 2020

O Canto Mais Escuro da Floresta - Holly Black

O livro narra a história de dois irmãos que cresceram nas florestas de Fairfold - um lugar assombrado por fadas travessas e por um caixão de vidro onde repousa um jovem misterioso com chifres avantajados. Filhos de jovens artistas, Ben e Hazel aprenderam a se virar e a suprir o lar dos pais negligentes pela vida na floresta mística. Lá os dois aprenderam a procurar por frutas selvagens e descobriram o seu enorme talento para caçar os seres que atacavam turistas na região. Ben, um ano mais velho, tem um talento para música que é capaz de enfeitiçar a criatura mais assustadora e Hazel é uma exímia guerreira. Os anos se passaram e agora os adolescentes se deparam com eventos na cidade que fazem que que ambos tenham que retornar às aventuras infantis para salvar a população humana local. 

As edições da Galera são extremamente bem feitas e sedutoras, este livro não é uma exceção. Acho que por isso fiquei com a sensação de que me entregaram muito menos do que foi prometido. A história parece que foi escrita por uma adolescente. Não sei dizer se a tradução tem alguma culpa nisso, mas o estilo de escrita é meio embolado e cansativo.

Ficamos com a sensação de que a história retrata as fantasias que crianças pequenas elaboram em suas brincadeiras, e não a incursão de adolescentes na tarefa de salvar a cidade de ataques místicos. Veja bem, não é porque o livro se enquadra no gênero fantasia que ele precisa ser infantil. O livro não me prendeu, arrastei-me pela leitura e não me identifiquei com personagem algum. Simplesmente não via a hora de acabar.

Editora: Galera
Páginas: 293
Nota: 2/5

quinta-feira, 14 de maio de 2020

O Sumiço - Georges Perec

E finalmente li uma obra integralmente ligada à corrente literária OuLiPo. Conforme já esperava, foi um prazer.
Em resumo, os autores dessa corrente buscavam utilizar todo o potencial da literatura utilizando contraintes, restrições, das formas mais inventivas possíveis. A escolha de Perec nessa obra foi escrever um romance de aproximadamente 230 páginas sem a vogal "E", a mais utilizada na língua francesa. Reza a lenda que alguns críticos não perceberam. Esse esforço por sim só já seria motivo de aplausos, porém o autor levou isso a mais um patamar: o enredo é exatamente sobre o sumiço das letras, em um mundo em que os personagens personificam o alfabeto. Como se não bastasse, página após página o leitor é surpreendido com jogos de linguagem e outras contraintes disfarçadas, deixando todo parágrafo como suspeito de conter uma metalinguagem desavisada. É óbvio e evidente que o ponto fraco da obra é que, ao se impor restrições, o autor fica impossibilitado de escrever exatamente o que deseja, tendo que se expressar de formas sub ideais, deixando alguns trechos confusos ou menos agradáveis à leitura. É um problema recorrente neste tipo de literatura que já percebi, por exemplo, em House of Leaves  e Ulisses, e que deve se repetir ao longo do repertório da OuLiPo. De qualquer forma, a história é cativante e divertida, e as metalinguagens mais ajudam do que atrapalham as confusões que elas causam. É um livro próximo da perfeição, limitado nesse sentido pela contrainte que o faz possível. Um paradoxo digno da bagunça toda. Essa é a minha opinião sobre a obra em si, mas um outro detalhe deve ser discutido: a tradução.
Para quem lê em outra versão que não a original, existe ainda mais um grau óbvio de metalinguagem. Não sei se a letra "E" aparece mais ou menos na língua portuguesa, mas certamente é uma das mais utilizadas por nós. Não consigo compreender o desafio que foi para Zéfere (que merecidamente tem seu nome em destaque na capa) traduzir essa obra, e alguns detalhes que ele partilha no posfácio deixam ainda mais fascinante o livro. Em alguns momentos é possível perceber o esforço direto de Perec em contornar a restrição, principalmente com os nomes e frases em outras línguas, mas notadamente a maior parte dos "dribles" visíveis são feitos pelo tradutor. Alguns jogos que poderiam passar batidos não o foram por conta da extensa pesquisa e dedicação reunidos na tradução. Fico em dúvida de quem é o verdadeiro autor aqui. 
Um livro para quem quer se aventurar no potencial expandido da literatura, se envolver num mistério cativante ou ver para crer como é possível não escrever com a letra E.

Nota: 4,5/5

quarta-feira, 13 de maio de 2020

A Lanterna Mágica de Mólotov - Rachel Polonsky

Tenho me rendido aos poucos ao povo russo. Consumindo mais literatura (apesar de não ter aparecido aqui ainda), música, culinária, e até tentado aprender um pouco daquele alfabeto exótico. Muito mais adiantada do que eu nessa estrada, a autora decide passar algum tempo na Mãe Rússia para pesquisar e ver com os próprios olhos o que apenas tinha lido. Nessa aventura, tem a oportunidade de alugar o apartamento que pertenceu ao famoso político soviético Vyacheslav Molotov -sim, aquele do coquetel- tendo assim acesso à sua biblioteca e a um excelente título para o livro.
Dividido em 14 capítulos, cada um retrata a passagem por um local de importância na história russa ou ao menos conhecido através de um personagem histórico. De Moscou à Sibéria, passando por lugares insólitos e escondidos, de fato parece que o país foi explorado em quase toda sua totalidade. Todos os grandes escritores como Tolstoi, Dostoievsky, Pushkin, Pasternak, Akmatova e Tchekov aparecem, além de outros mais desconhecidos, é impossível não se maravilhar com o conhecimento acumulado da autora. Políticos como Lenin, Stalin e Putin, suas ações, oficiais ou não, também são apontados. Na verdade, só quem não tem muito destaque é o russo comum.
Importante ressaltar que não se trata de um livro didático ou que siga uma cronologia ou ordem definida, apesar de ser muito bem documentado e com uma bibliografia extensa para os mais curiosos. Certamente não é um livro para um contato inicial com a história russa, mas para quem já se minimamente habituado com os conceitos do Tzarismo, da Revolução, União Soviética e o básico da literatura. Sem isso, o livro simplesmente não faz sentido, como não fez para mim em partes que era totalmente ignorante sobre determinado assunto, como a poesia de Akmatova.
O ponto fraco: no afã de colocar todo seu conhecimento condensado na obra, a autora deixou de lado a habilidade literária. É maçante na maior parte do tempo, arrastado. Pequenos causos sobre personagens pequenos que podem interessar a um historiador aprofundado tomam parte de páginas e mais páginas, cansando um pouco o leitor mais casual. Demorei mais tempo que o normal para terminar suas 350 páginas por conta disso. Em geral, uma boa obra para os curiosos sobre a Rússia que queiram expandir seus conhecimento.

Nota: 3/5

sábado, 9 de maio de 2020

A Fera em Mim: a história do príncipe da Bela - Serena Valentino

A Bela e a Fera é o meu conto de fadas predileto. Dito, isso, é natural que eu me sinta atraída pelas múltiplas versões da história que pipocam no mercado editorial. Quando vi o livro pensei: um livro sob a perspectiva da fera, interessante. É um infantojuvenil, então peguei o livro com os pés bem fincados ao chão.

A contracapa do livro afirma o seguinte: "não importa qual versão da história você conhece, as perguntas que ficam são: como o príncipe se transformou na famosa Fera? Como ele conseguiu conquistar o frágil e inocente coração de uma das personagens mais amadas de todos os tempos? Pode o amor transformar algo tão profundamente? A verdade é que as coisas nem sempre são como parecem."

É, Serena Valentino, a verdade é que as coisas nem sempre são o que parecem. E esse livro é um grande exemplo disso. Testemunhamos a história da decadência do ganancioso príncipe sem nome que ficou conhecido, depois da sua transformação em animal, em Fera e a vingança das maldosas bruxas que o amaldiçoam e a todo o seu castelo. A partir daí, é a história que todo mundo já conhece. E quando afirmo isso, digo literalmente que é a história que todo mundo já conhece.

Não posso afirmar que algumas frases são idênticas à última versão da Disney da história (que, por sinal, assisti recentemente) porque não me dei ao trabalho de comparar. Mas essa foi a sensação. Além disso, acompanhamos a história da decadência da Fera, mas não da sua redenção.

E a perspectiva da fera? Se mistura com a perspectiva de todo mundo: das ex-noivas, bruxas, serviçais, Gaston, Bela. Uma confusão.

"Como o amor pode transformar algo tão profundamente?" - Ficou a incógnita.

Nota: 1/5
Editora: Universo dos Livros
Páginas: 190

Uma Estação de Amor, seguido de Dorothy Phillips, minha esposa - Horacio Quiroga

O pequeno livro é composto pelas histórias que podem ter a sua linearidade resumida na seguinte citação que Quiroga faz de Dostoiéviski: "não há nada mais belo na vida do que uma lembrança pura". Esta citação foi usada para descrever as lembranças do amor juvenil de Nébel, que vive um quase romance proibido com a menina Lídia. Afirmo quase romance porque Nébel preferiu por manter a menina assim: como uma imagem pura e imaculada que, enquanto uma angelical menina de 14 anos não foi sequer por ele beijada. Todavia, posso afirmar que a citação afirmada também se aplica ao segundo conto, que descreve a paixão do argentino Grant pelo belo olhar das atrizes de cinema norte-americanas, que ele contempla nas suas idas assíduas ao cinema local.

As histórias de Quiroga são marcadas pelo devaneio, pelo gozo da iminência de uma sensação que só é prazerosa porque nunca realizada. E, como nunca realizada, permanece perfeita no mundo da imaginação dos personagens. As mulheres de Quiroga são como anjos imaculados, perfeitos porque inacessíveis e, porque inacessíveis, desejáveis.

Horácio Quiroga tem um excelente domínio da escrita, mas sobretudo da passagem do tempo e espaço das duas histórias. Os contos são dinâmicos, sofisticados e imaginativos.

Nota: 5/5
Editora: L&PM Pocket
Páginas: 126

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Morte Súbita - Álvaro Enrigue

"Não sei, enquanto escrevo esse livro, sobre o que ele é. O que ele conta. Não é exatamente sobre uma partida de tênis. Também não é um livro sobre a lenta e misteriosa integração da América àquilo que chamamos, com obscena desorientação, "o mundo ocidental" - para os americanos, a Europa fica no Oriente. Talvez seja um livro que trata apenas de como esse livro poderia ser contado, talvez todos os livros tratem apenas disso. Um livro com vaivéns, como um jogo de tênis."
Difícil resenhar esse livro depois que o próprio autor já o faz tão bem no meio da própria obra.
Morte Súbita é uma obra prima da literatura absurda ou surreal. Seu fio condutor é a fictícia, porém historicamente possível, partida de tênis em plena Piazza Navona entre os contemporâneos Caravaggio, o famoso pintor italiano do chiaroscuro, e o poeta Francisco de Quevedo. A partida por si só é irrelevante, e desconfio que só foi utilizada de palco do duelo das personalidades porque o autor é especializado na história desse esporte. Aos poucos vão sendo relevados causos que passam pela reforma anglicana e a conquista da América espanhola, histórias que o autor teve o cuidado de escrever baseado em possibilidades reais, embora totalmente inventadas e absurdas. Em alguns momentos fui até checar no Google tamanha a verossimilhança, só para descobrir que fui feito de tonto.
Conforme o livro avança, se torna possível ao leitor começar a desconfiar do motivo da partida. As personalidades dos jogadores e celebridades da audiência - como Galileu Galilei - vão sendo desenvolvidas e separadas em polos distintos que justificam o embate. Figuras históricas que surgem durante a narrativa também são analisadas, como Hernan Cortez, papas e reis, para, no final, toda a loucura fazer sentido. Mesmo com o autor se esforçando muito para criar situações absurdas, nada fica mal explicado ou em aberto. Muito recomendado para quem, como eu, está cansado do surreal fundado nele mesmo e com as outras qualidades literárias deixadas de lado.

Nota: 4/5

Maresi: as crônicas da Abadia Vermelha (vol.1) - Maria Turtschaninoff

Percorri meus olhos pela prateleira de livros ainda não lidos e tive um pressentimento sobre Maresi. Algo no meu coração me dizia que este remédio iria me curar e que o meu coração iria encontrar algum abrigo na Abadia Vermelha. E assim foi. O presente livro é o primeiro de uma trilogia sobre um refúgio para mulheres. Um lugar mágico em que homens são proibidos de entrar e as mulheres acolhidas, muitas perseguidas e proibidas de estudar no lugar onde nasceram, podem aprender sobre o mundo e experimentá-lo sem medo. Lá elas cultivam o que precisam para comer, tecem, cuidam dos animais, aprendem sobre as fundadoras do local e sobre as magias do corpo feminino.

Maresi é a protagonista que fugiu do Inverno da Fome na sua terra natal e encontrou saciedade e conforto na ilha das mulheres. Curiosa, a menina conhece Jai, que foge dos horrores do local de onde veio. As duas desenvolvem um estreito laço de amizade enquanto aprendem sobre os rituais e sobre a história da ilha até que um evento colocará a segurança de todos em risco. 

Ler Maresi foi ter o meu coração inundado por amor. A história é curta, extremamente bem escrita, com uma linguagem direta e dinâmica. Os personagens são bem desenhados e a ilha de Menos (onde a Abadia se encontra) é tão bem detalhada que ficamos com a sensação de que o lugar poderia ser real. Mais do que isso, ficamos com a enorme vontade de conhecer o refúgio escondido.

Já estou comprando o próximo!

Nota: 5/5
Editora: Morro Branco
Páginas: 199

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Os Melhores Contos de Fadas Nórdicos - Editora Wish

Vista um casaco grosso, coloque a chaleira no fogo e se assegure de estar devidamente aquecido antes de imergir nas histórias geladas e emocionantes da inóspita e bela Escandinávia. Sempre tive experiências prazerosas lendo livros da editora Wish. O conteúdo textual é apenas um dos elementos que compõe a obra com um cuidadoso acabamento, uma composição de extremo bom gosto e a presença de ilustrações magníficas. Viajamos com os marcadores de texto a cada interrupção de leitura enquanto repousamos as mãos na capa grossa, bem feita e com relevos delicados. Este não é um livro para ser devorado, mas saboreado em pequenas doses como um chocolate refinado que deixamos derreter sobre a língua enquanto degustamos as suas notas suaves.
Resenhar um livro de contos escritos por autores diversos em períodos históricos diversos é uma tarefa complexa: pressupõe adotar uma linearidade que o conjunto da obra dificilmente permite. Mas foi incrível conhecer os contos nórdicos. Com o livro pude conhecer histórias delicadas recheadas de trolls de várias cabeças, duendes, gigantes, bruxas e animais humanizados. Emocionei-me com a fragilidade e inocência com que as crianças escandinavas são retratadas  no seu poder de dobrar e amolecer o coração mais duro e selvagem. Principalmente, me surpreendi com o protagonismo das personagens femininas, principalmente em contraposição ao livro Contos de Fadas em suas Versões Originais, da mesma editora. Conheci ainda o modelo de homem nórdico: forte, destemido, apto a desbravar o mundo, mas apaixonado e leal à sua família.
Aguardo ansiosamente pela chegada dos Contos de Fadas Celtas, que deve ocorrer no próximo mês. Porém reconheço, terminei o livro desejando por mais histórias nórdicas. Vocês tem alguma recomendação?

Nota: 5/5
Editora: Wish
Páginas: 320

terça-feira, 5 de maio de 2020

O Caminho da Porcelana - Edmund de Waal

Uma vez fui a um museu e fiquei impressionado com uma determinada peça de porcelana. Não aquele "impressionado" que você encara por alguns segundos e segue vendo a exposição, mas impressionado de verdade, de perder minutos admirando e eventualmente ir perturbar algum curador na administração para descobrir detalhes da peça (essa aqui). No meio do livro, o autor revela que é um dos curadores do tal museu, e conseguiu minha atenção.
Porcelana não é exatamente um assunto que traga grande entusiasmo e provoque questionamentos, mas o livro faz um excelente trabalho em conduzir seu desenvolvimento ligado diretamente à questões digamos... mais atraentes. A porcelana chinesa confronta as diferenças entre oriente e ocidente no que tange à originalidade e função da arte. Os alemães aparecem duas vezes, primeiro com o início da alquimia e consequentemente da química moderna e depois com o horror do nazismo e seus trabalhos forçados em campos de concentração. A Inglaterra, como não poderia deixar de ser, com a revolução industrial e o imperialismo. Os Estados Unidos, com o aprimoramento do sistema capitalista. Tudo isso caminhando junto com a porcelana, e o leitor que persevera até o final certamente ganha uma bagagem cultural dificilmente encontrada de outra forma.
O ponto do fraco do livro: é arrastado e o autor, que se diz primordialmente um ceramista, não tem uma escrita cativante, sendo por muitas vezes confuso. A obra é escrita de forma bem heterodoxa, passando a narração da primeira para a terceira pessoa sem aviso prévio e, arrisco dizer, a tradução tem sua culpa nessa esquisitice. Diversas referências eu percebi que não captei, outras eu captei mas achei desnecessárias e até utilizadas para impressionar, mas essa impressão pode ser reflexo da minha incultura perto do autor. Mas, em geral,  bom livro para quem gosta de curiosidades e expandir seus conhecimentos em assuntos aleatórios.

Nota: 3/5

sábado, 2 de maio de 2020

A Ocasião - Juan José Saer

Não sei em qual momento a humanidade conseguiu enxergar os shows de mágica como entretenimento puro, e não exibições de poderes sobrenaturais reais. Na realidade, até hoje alguns charlatões conseguem iludir plateias incautas e dar uma de Uri Geller, o que me leva ao segundo pensamento: será que o charlatão não sabe que é um charlatão, da mesma for que um desafinado vai esperançoso a um show de talentos? Esse é o primeiro fio condutor da obra, que se inicia com a tragédia da exposição pública do charlatanismo do protagonista em um grande palco europeu.
Agora exilado e honestamente investido na construção de uma nova vida na Argentina, o herói se vê em uma incômoda situação de dúvida: teria sua mulher, em uma ocasião (belo título) específica o traído com seu sócio e melhor amigo? Pior ainda, teria ela engravidado do outro? Para um leitor de mentes, uma questão complicada. No melhor estilo Bentinho e Capitu, leia e tire sua conclusão, porque o autor nos fez o favor de não revelar.
O ponto alto da obra é a habilidade literária do autor. Não existe uma página que passe arrastada ou sem uma construção de pensamento poderosa. Nem sempre os fatos narrados estão em ordem cronológica, e algumas premissas são apresentadas muito antes de seus resultados, demonstrando o quão bem arquitetada é a trama. Somos inseridos em detalhes da vida gaúcha que somente alguém curtido nela poderia conhecer, e é possível reconhecer em cada personagem um arquétipo bem típico e desenvolvido. Existe uma espécie de conto curto no meio da obra, quase irrelevante para o enredo, onde o autor claramente quis inserir aspectos da vida na região que estariam deslocados da trama, mas para ele era importante representar. Uma história gigantesca em menos de 200 páginas.

Nota: 3,5/5

A Obra de Arte na Época da Reprodutibilidade Técnica - Walter Benjamin

De tempos em tempos as mudanças de paradigmas exigem dos pensadores uma ressignificação dos conceitos. Talvez o maior alvo desse fenômeno ...