quinta-feira, 14 de maio de 2020

O Sumiço - Georges Perec

E finalmente li uma obra integralmente ligada à corrente literária OuLiPo. Conforme já esperava, foi um prazer.
Em resumo, os autores dessa corrente buscavam utilizar todo o potencial da literatura utilizando contraintes, restrições, das formas mais inventivas possíveis. A escolha de Perec nessa obra foi escrever um romance de aproximadamente 230 páginas sem a vogal "E", a mais utilizada na língua francesa. Reza a lenda que alguns críticos não perceberam. Esse esforço por sim só já seria motivo de aplausos, porém o autor levou isso a mais um patamar: o enredo é exatamente sobre o sumiço das letras, em um mundo em que os personagens personificam o alfabeto. Como se não bastasse, página após página o leitor é surpreendido com jogos de linguagem e outras contraintes disfarçadas, deixando todo parágrafo como suspeito de conter uma metalinguagem desavisada. É óbvio e evidente que o ponto fraco da obra é que, ao se impor restrições, o autor fica impossibilitado de escrever exatamente o que deseja, tendo que se expressar de formas sub ideais, deixando alguns trechos confusos ou menos agradáveis à leitura. É um problema recorrente neste tipo de literatura que já percebi, por exemplo, em House of Leaves  e Ulisses, e que deve se repetir ao longo do repertório da OuLiPo. De qualquer forma, a história é cativante e divertida, e as metalinguagens mais ajudam do que atrapalham as confusões que elas causam. É um livro próximo da perfeição, limitado nesse sentido pela contrainte que o faz possível. Um paradoxo digno da bagunça toda. Essa é a minha opinião sobre a obra em si, mas um outro detalhe deve ser discutido: a tradução.
Para quem lê em outra versão que não a original, existe ainda mais um grau óbvio de metalinguagem. Não sei se a letra "E" aparece mais ou menos na língua portuguesa, mas certamente é uma das mais utilizadas por nós. Não consigo compreender o desafio que foi para Zéfere (que merecidamente tem seu nome em destaque na capa) traduzir essa obra, e alguns detalhes que ele partilha no posfácio deixam ainda mais fascinante o livro. Em alguns momentos é possível perceber o esforço direto de Perec em contornar a restrição, principalmente com os nomes e frases em outras línguas, mas notadamente a maior parte dos "dribles" visíveis são feitos pelo tradutor. Alguns jogos que poderiam passar batidos não o foram por conta da extensa pesquisa e dedicação reunidos na tradução. Fico em dúvida de quem é o verdadeiro autor aqui. 
Um livro para quem quer se aventurar no potencial expandido da literatura, se envolver num mistério cativante ou ver para crer como é possível não escrever com a letra E.

Nota: 4,5/5

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